Prólogo I & II
Paz.
Dor.
Palavra tão pequena, mas tão subjetiva que seria estranho descrever - senão impossível - de uma única forma exata e que correspondesse o desejo de milhões de pessoas. Assim como tranqüilidade. Segurança. Felicidade.
Palavra desconhecida de grande parte da - ou de toda a - população. Apesar disso, sua ausência na vida da sociedade parece não ser suficiente para garantir os desejos de todos os milhões de pessoas. Os sonhos. As vontades.
Se comparássemos os dias de hoje com o que se lê em livros e registros de 50 anos atrás, ou iríamos rir, ou simplesmente consideraríamos ficção. Pura ficção científica.
Entretanto, o avanço é inegável: nenhum de nossos antepassados poderia prever que o mundo estaria tão mais seguro. Isso era, há cinquenta anos atrás, ficção.
Afinal, como acreditar que por anos a força policial não era suficiente para manter a ordem pública? Como acreditar que em casos comuns mais de 50% da população vivia abaixo da linha de classe média? Que viviam nas ruas, em barracos, em favelas. Há moradia para todos.
As forças de contenção desapareceram das ruas, dando a impressão de "ordem" e de "progresso". As pessoas não mais vivem nas ruas, não mais vivem abandonadas. Elas vivem iguais, confortáveis e dignas. Os direitos são iguais para todos. Ou deveriam ser.
Para todos aqueles que podiam ter, e para alguns poucos “testas de ferro” que foram beneficiados com tais “direitos iguais”, que na verdade não passou de propaganda. E estes ainda são os que mais defendem o sistema. Este novo sistema.
O que ocorre, de fato, é o de sempre: os mais fortes têm direitos, têm tudo. Os mais fracos continuam sem nada, fugindo e se escondendo, porque "a população" não pode vê-los. População, esta, que não sabe o que está vivendo, achando que o sistema está correto e, por isso, eles são mais felizes: no regime antigo, também seriam. A condição continuaria igual, apesar do... novo sistema.
Não há mais as grandes mídias. Há a Grande Mídia. Um único veículo de informação que é controlado pelos dominantes no poder, que se encarregam de comunicar e avisar de tudo que acontece, a cuidar da população.
Toda a liberdade foi removida. A internet foi colocada abaixo, controlada. A televisão. Os rádios. As ondas. Só há a Grande Mãe, a Grande Mídia, que continua a dizer à população que está tudo sob controle, tudo perfeitamente bem.
Piada!
Tortura.
Tudo que passa é controlado. Não há liberdade de expressão, não há liberdade de imprensa. Tudo em nome da tal “paz”. Câmeras por várias partes. Controle de natalidade.
Não existe mais "eu". Não existem sonhos, desejos ou liberdades de cada um. O objetivo é a sociedade, é a paz do novo sistema. Nossas vidas são controladas, nossos filhos são controlados.
Regulamentação de vidas. Registros de IF.Todos os cidadãos são obrigados a serem registrados, mas não apenas em Registro Civil ou Carteira de Pessoa Física, que aliás são um mesmo documento.
Sentimos nossas vidas tiradas de nós enquanto somos etiquetados, obrigados a entrar em filas, de ano em ano, para refazer o nosso código. O nosso documento único, reunindo os antigos registros que eram sub-divididos em vários outros.
Há um mesmo registro chamado IF, dentro do maior banco de registros de cada país, onde constam todas as informações possíveis e impossíveis sobre todos: nome, nascimentos, pais, irmãos, conjugues, instrução, tipo sanguineo, registro de doenças, registros criminais, antepassados.
"Eles" têm todas as nossas informações à disposição deles, para que nos vigiem, premiem... ou castiguem. Temos a nossa vida catalogada de tal maneira que eu, ao menos, sinto como se ela não fosse nossa. Enquanto o nosso sangue pulsa por nosso corpo, e nosso cérebro nos dá as idéias e pensamentos, o controle deles torna isso...
Tudo.
Nada.
É como se houvesse um batalhão de pessoas para controlar uma única pessoa. Ou, como já houve antes no passado, a sociedade inteira se vigia.
Alguns poucos escolhidos escapam desse destino, tornando-se parte da Elite. Dos que vigiam. Apesar das próprias pessoas, com medo, cuidarem de seus vizinhos e familiares, denunciando todo e qualquer erro...
Extremamente desconfortável.
O terror saiu das ruas e habita o coração das pessoas, agora.
Como se não fosse o suficiente, este IF ainda é registrado na própria pele, para que não haja fraude, falsidade ideológica. Para que eles não percam o controle sobre seu rebanho, acredito eu.
E é fácil perceber isso quando, nas filas para a remarcação do IF - o documento único de que falei -, os olhares se evitam. É como se todos fossem inimigos, como se a violência - que eles não conheceram - pudesse voltar a qualquer momento.
Que trágico seria, não? Vontade própria. Realmente, horrível.
Seria trágico, de fato. Apesar disso, talvez com essa violência voltasse o direito de agir, voltasse a liberdade...
Quando as mudanças começaram a acontecer, a pouco mais de 50 anos atrás, as pessoas começaram a acreditar que finalmente o governo estava tomando atitudes positivas.
Quando tudo isso começou, o apoio era unânime: todos achavam que era o caminho certo a se seguir, que a sociedade se consertaria sob a força de um governo justo e rigoroso.
A Força Pública estava nas ruas controlando a marginalidade, a violência, contruindo novas moradias, limpando as ruas. Todos aprovaram. Todos – todos aqueles que se incomodavam com a situação não por ser parte dela, mas por assistir a ela.
Esse mesmo Governo foi às ruas para, enfim, fazer o que todos pediam: trazer a "paz". Marginais eram presos sem direito à julgamento - afinal, qual melhor forma de controlar a sociedade que o medo? -, e executados em seguida, escondidos da visão da população. Os justos ficavam em casa, apoiando: não seriam eles, afinal, os prejudicados.
Quem é que não preferiria uma cidade limpa, sem perigo de assaltos, de violência, sem a marginalidade a espreita?
Já que a violência seria eliminada, dessa forma, qual era o problema em prender alguns inocentes? Era a única maneira de alcançar o objetivo.
Mas com o tempo isso foi se tornando mais efetivo. Mais vigilância. Mais controle.
Porém, começaram a prender cada vez mais inocentes: não era necessário fazer, era necessário apenas estar. Na hora errada, no lugar errado. E, se os "inocentes" fossem realmente bons, aceitariam morrer pelo bem maior. Se não aceitavam, não mereciam viver, de qualquer forma.
E eram executados como os outros.
E quando acreditou-se que finalmente vivia-se uma época de ouro, uma época de paz e tranqüilidade, veio o Baque. Há um nome histórico para o que aconteceu, mas nós chamamos de Baque, que fora dos registros históricos nada mais é do que o extermínio da classe baixa, abafada por uma grande tragédia.
E, após anos de extermínio, de luz e felicidade, veio a Grande Depressão. Como a crise financeira de 1929, mas uma crise social. O setor mais baixo passou por uma terrível epidemia, uma época de revoltas, sendo lacrado. Porém, os sistemas entraram em pane, explodindo. Não havia fuga, e a rede elétrica caíra: morreram todos.
Só que não é tão fácil exterminar-nos. Temos tanto direito quanto todo o resto, embora o resto não tenha reconhecimento disso. É mais fácil viver em suas casas confortáveis e respeitar as leis do que contestar.
Uma série de assassinatos, na verdade, escondidos sob a alcunha de um acidente. O que aconteceu foi uma guerra civil, como a que vivemos hoje: os pobres se revoltam, tentam mostrar A Verdade a todos. E é meu dever, como guardião dessa "paz", respeitar as leis.
E não contestá-las, apesar do meu desejo.
Yard, 10.887.693-XX, Capitão do Terceiro Setor.
Dor.
Palavra tão pequena, mas tão subjetiva que seria estranho descrever - senão impossível - de uma única forma exata e que correspondesse o desejo de milhões de pessoas. Assim como tranqüilidade. Segurança. Felicidade.
Palavra desconhecida de grande parte da - ou de toda a - população. Apesar disso, sua ausência na vida da sociedade parece não ser suficiente para garantir os desejos de todos os milhões de pessoas. Os sonhos. As vontades.
Se comparássemos os dias de hoje com o que se lê em livros e registros de 50 anos atrás, ou iríamos rir, ou simplesmente consideraríamos ficção. Pura ficção científica.
Entretanto, o avanço é inegável: nenhum de nossos antepassados poderia prever que o mundo estaria tão mais seguro. Isso era, há cinquenta anos atrás, ficção.
Afinal, como acreditar que por anos a força policial não era suficiente para manter a ordem pública? Como acreditar que em casos comuns mais de 50% da população vivia abaixo da linha de classe média? Que viviam nas ruas, em barracos, em favelas. Há moradia para todos.
As forças de contenção desapareceram das ruas, dando a impressão de "ordem" e de "progresso". As pessoas não mais vivem nas ruas, não mais vivem abandonadas. Elas vivem iguais, confortáveis e dignas. Os direitos são iguais para todos. Ou deveriam ser.
Para todos aqueles que podiam ter, e para alguns poucos “testas de ferro” que foram beneficiados com tais “direitos iguais”, que na verdade não passou de propaganda. E estes ainda são os que mais defendem o sistema. Este novo sistema.
O que ocorre, de fato, é o de sempre: os mais fortes têm direitos, têm tudo. Os mais fracos continuam sem nada, fugindo e se escondendo, porque "a população" não pode vê-los. População, esta, que não sabe o que está vivendo, achando que o sistema está correto e, por isso, eles são mais felizes: no regime antigo, também seriam. A condição continuaria igual, apesar do... novo sistema.
Não há mais as grandes mídias. Há a Grande Mídia. Um único veículo de informação que é controlado pelos dominantes no poder, que se encarregam de comunicar e avisar de tudo que acontece, a cuidar da população.
Toda a liberdade foi removida. A internet foi colocada abaixo, controlada. A televisão. Os rádios. As ondas. Só há a Grande Mãe, a Grande Mídia, que continua a dizer à população que está tudo sob controle, tudo perfeitamente bem.
Piada!
Tortura.
Tudo que passa é controlado. Não há liberdade de expressão, não há liberdade de imprensa. Tudo em nome da tal “paz”. Câmeras por várias partes. Controle de natalidade.
Não existe mais "eu". Não existem sonhos, desejos ou liberdades de cada um. O objetivo é a sociedade, é a paz do novo sistema. Nossas vidas são controladas, nossos filhos são controlados.
Regulamentação de vidas. Registros de IF.Todos os cidadãos são obrigados a serem registrados, mas não apenas em Registro Civil ou Carteira de Pessoa Física, que aliás são um mesmo documento.
Sentimos nossas vidas tiradas de nós enquanto somos etiquetados, obrigados a entrar em filas, de ano em ano, para refazer o nosso código. O nosso documento único, reunindo os antigos registros que eram sub-divididos em vários outros.
Há um mesmo registro chamado IF, dentro do maior banco de registros de cada país, onde constam todas as informações possíveis e impossíveis sobre todos: nome, nascimentos, pais, irmãos, conjugues, instrução, tipo sanguineo, registro de doenças, registros criminais, antepassados.
"Eles" têm todas as nossas informações à disposição deles, para que nos vigiem, premiem... ou castiguem. Temos a nossa vida catalogada de tal maneira que eu, ao menos, sinto como se ela não fosse nossa. Enquanto o nosso sangue pulsa por nosso corpo, e nosso cérebro nos dá as idéias e pensamentos, o controle deles torna isso...
Tudo.
Nada.
É como se houvesse um batalhão de pessoas para controlar uma única pessoa. Ou, como já houve antes no passado, a sociedade inteira se vigia.
Alguns poucos escolhidos escapam desse destino, tornando-se parte da Elite. Dos que vigiam. Apesar das próprias pessoas, com medo, cuidarem de seus vizinhos e familiares, denunciando todo e qualquer erro...
Extremamente desconfortável.
O terror saiu das ruas e habita o coração das pessoas, agora.
Como se não fosse o suficiente, este IF ainda é registrado na própria pele, para que não haja fraude, falsidade ideológica. Para que eles não percam o controle sobre seu rebanho, acredito eu.
E é fácil perceber isso quando, nas filas para a remarcação do IF - o documento único de que falei -, os olhares se evitam. É como se todos fossem inimigos, como se a violência - que eles não conheceram - pudesse voltar a qualquer momento.
Que trágico seria, não? Vontade própria. Realmente, horrível.
Seria trágico, de fato. Apesar disso, talvez com essa violência voltasse o direito de agir, voltasse a liberdade...
Quando as mudanças começaram a acontecer, a pouco mais de 50 anos atrás, as pessoas começaram a acreditar que finalmente o governo estava tomando atitudes positivas.
Quando tudo isso começou, o apoio era unânime: todos achavam que era o caminho certo a se seguir, que a sociedade se consertaria sob a força de um governo justo e rigoroso.
A Força Pública estava nas ruas controlando a marginalidade, a violência, contruindo novas moradias, limpando as ruas. Todos aprovaram. Todos – todos aqueles que se incomodavam com a situação não por ser parte dela, mas por assistir a ela.
Esse mesmo Governo foi às ruas para, enfim, fazer o que todos pediam: trazer a "paz". Marginais eram presos sem direito à julgamento - afinal, qual melhor forma de controlar a sociedade que o medo? -, e executados em seguida, escondidos da visão da população. Os justos ficavam em casa, apoiando: não seriam eles, afinal, os prejudicados.
Quem é que não preferiria uma cidade limpa, sem perigo de assaltos, de violência, sem a marginalidade a espreita?
Já que a violência seria eliminada, dessa forma, qual era o problema em prender alguns inocentes? Era a única maneira de alcançar o objetivo.
Mas com o tempo isso foi se tornando mais efetivo. Mais vigilância. Mais controle.
Porém, começaram a prender cada vez mais inocentes: não era necessário fazer, era necessário apenas estar. Na hora errada, no lugar errado. E, se os "inocentes" fossem realmente bons, aceitariam morrer pelo bem maior. Se não aceitavam, não mereciam viver, de qualquer forma.
E eram executados como os outros.
E quando acreditou-se que finalmente vivia-se uma época de ouro, uma época de paz e tranqüilidade, veio o Baque. Há um nome histórico para o que aconteceu, mas nós chamamos de Baque, que fora dos registros históricos nada mais é do que o extermínio da classe baixa, abafada por uma grande tragédia.
E, após anos de extermínio, de luz e felicidade, veio a Grande Depressão. Como a crise financeira de 1929, mas uma crise social. O setor mais baixo passou por uma terrível epidemia, uma época de revoltas, sendo lacrado. Porém, os sistemas entraram em pane, explodindo. Não havia fuga, e a rede elétrica caíra: morreram todos.
Só que não é tão fácil exterminar-nos. Temos tanto direito quanto todo o resto, embora o resto não tenha reconhecimento disso. É mais fácil viver em suas casas confortáveis e respeitar as leis do que contestar.
Uma série de assassinatos, na verdade, escondidos sob a alcunha de um acidente. O que aconteceu foi uma guerra civil, como a que vivemos hoje: os pobres se revoltam, tentam mostrar A Verdade a todos. E é meu dever, como guardião dessa "paz", respeitar as leis.
E não contestá-las, apesar do meu desejo.
Yard, 10.887.693-XX, Capitão do Terceiro Setor.
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