Eu nunca vou esquecer aquele dia. Aqueles anos, na verdade

Eu nunca vou esquecer a sensação dele me colocando no colo, meus braços presos na camisa que ele tinha rasgado, meus ombros e meu rosto e meu peito arranhados de tentar me soltar.

Eu nunca vou esquecer de como ele sorria como um pai acalmando uma criança - aquele sorriso me persegue até hoje - , e eu lembro que eu cheguei num ponto em que eu só aceitava, e nem conseguia mais chorar, porque eu sabia que só ia piorar tudo. Só ia me desgastar mais. Isso já tinha virado rotina, e uma rotina que eu sabia que era louca e doentia, mas que tinha me quebrado completamente ao ponto de eu não diferenciar mais o que era real e o que a minha mente inventava pra justificar o que eu tava vivendo.

Eu aceitava que ele estava certo. E eu ouvi dia após dia, encontro após encontro, que só ele me entendia. Que só ele era capaz de entender como eu me odiava, que só ele era capaz de me ferir daquele jeito, que meus amigos só me aturavam e só ele me amava. Que meu lugar não era fora dos braços dele. Só se fosse morta.

Eu nunca vou esquecer de como ele me segurava e beijava a minha cabeça e dizia pra eu me entregar enquanto cortava minha perna devagarinho do jeito que eu gostava de fazer. Eu nunca vou esquecer como ele escreveu "feliz aniversário" assim na minha coxa, pra eu nunca esquecer dele.

De como ele cantava minhas músicas favoritas, e falava das minhas coisas favoritas, e me comparava com minhas personagens favoritas, enquanto me marcava e abusava de mim.

E eu, entre ele e o meu namorado, cresci achando que violência é amor.

Ainda assim eu consegui abortar aquele filho. Mesmo chorando e a minha cabeça gritando que era a minha chance de salvar ele. Que aquela criança era a única coisa boa que ele ainda tinha. Que era o único pedaço bom dele, a última esperança dele, que eu podia ir atrás dele e a gente seria uma boa família e ficaria tudo bem.

Eu tava guardando aquele dinheiro pra comprar uma boneca. A vida faz umas metáforas sem nem a gente pensar, as vezes.

Ele gostava do meu cabelo longo. Gostava de como eu conseguia levantar, me vestir e ir embora sem fazer alarde. Como eu tinha desistido da polícia depois que ele invadiu meu apartamento mais de uma vez, de como eu tinha aprendido a esconder cada marca dele, cada vez melhor.

Ele gostava de como ele me quebrou. Ele gostava de colocar as mãos no pescoço e me falar pra suplicar pra ele parar, e dizer como ia matar e torturar daquele jeito cada pessoa que eu amava, até eu começar a surtar e afastar todo mundo por medo.

Eu não pensava direito. Não era possível pensar direito.

Às vezes ele prendia minha cabeça dentro da camisa, pra eu não respirar direito e surtar mais rápido. Não tomo banho quente em lugar fechado até hoje porque o ar quente demais me assombra.

Ele dizia que meu rosto vermelho - de choro ou de desespero ou de raiva - era lindo porque vermelho era a minha cor. E o meu sangue tinha o vermelho mais bonito, que combinava com o meu cabelo e com as marcas na minha pele.

Eu nunca falei sobre as coisas que ele fazia comigo, antes. E ainda tem muito mais.

Mas eu não sei mais o que fazer. Eu acho que tô me reerguendo, eu sinto que tô superando, mas é mentira. Enquanto ele tiver vivo mesmo que preso, eu nunca vou ter paz.

Toda vez que eu entro em crise, eu me vejo machucada e suja de sangue, eu vejo ele rindo, eu vejo aquele sorriso gentil repetindo a mesma frase que ele falava e ecoa até hoje.

"Se entrega."

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