31.03.17

Imagine que você mora em uma casa há muitos anos, e que a porta da frente nunca teve chave, e você nunca teve um contrato provando que a casa é sua.

Por muitos anos, tá tudo ok: você sai e encosta a porta, e ninguém entra, ninguém te denuncia, ninguém nada. Seus vizinhos são legais, seus amigos te visitam, sua casinha é elogiada e amada porque você lutou muito, muito mesmo, pra colocar tudo no lugar que está hoje.

Mas um dia você entrou e tem uma pessoa estranha lá dentro. Essa pessoa come a sua comida, e deixa as coisas no chão. Ela dorme na sua cama e não arruma. Ela mexe nas suas coisas, expulsa seus amigos, tira tudo do lugar.

Você pede pra ela sair, mas ela ri de você. Ri de como você não é dona porra nenhuma de casa nenhuma, de como você não é firme o suficiente pra tirar ela de lá. Aí você ameaça chamar a polícia, e ela te responde que é tão dona da casa quanto você.

Depois de muito tentar, você acaba deixando ela ficar. Já se acostumou a chegar em casa e recolher as embalagens de comida, as roupas no chão, a pedir desculpas pros seus amigos quando essa pessoa é escrota. E eles tão acostumados com a visita fixa, também.

Mas vão chegando mais pessoas, e se instalando na sua casa. E um belo dia você acorda com uma música EXPLODINDO no som do andar de baixo.

Então você larga tudo e desce correndo, só pra ver que a sua casa tá completamente destruída. Seus quadrinhos tão quebrados, suas plantas tão mortas, tem roupa e sujeira por todos os lados, e meu deus, você não consegue nem se ouvir enquanto grita e tenta mandar essas pessoas embora!

Mas elas riem.
Elas riem do seu pijama, de como você desceu completamente desnorteada, elas riem dos seus quadros quebrados, das suas roupas, da sua comida, da sua música.

Enquanto riem de você e da sua fragilidade, de como você é incapaz de expulsá-las, de como você deixou isso tudo acontecer.

Enquanto comem tudo que tem no seu armário e te deixam sem ter o que comer, porque essas pessoas não saem pra comprar mais. E sem roupas limpas, porque essas pessoas não limpam o que sujam.

E logo a sua casinha tá completamente destruída, irreconhecível, enquanto você corre de um lado pro outro tentando socorrer e minimizar os danos.

Mas não dá.
Você corre na cozinha porque quebraram um copo, e quebram uma cadeira na sala.
Você corre na sala pra consertar a cadeira, elas jogam suas roupas pela escada.
Você pula os degraus recolhendo camisetas velhas e meias sujas, elas jogam seu cachorro na piscina.

Você nem tinha um cachorro antes disso tudo começar.

E no meio disso tudo, meu deus, meu deus, você não consegue dormir. Você deita, exausta, com o corpo doendo, a cabeça explodindo, o estômago na boca, mas aquela música não para. E as pessoas não param de gritar e bater na porta dizendo o quanto a casa tá destruída, o quanto você precisa fazer alguma coisa, o quanto, porra, você é a anfitriã, cadê a bebida?!

No trabalho, seu rendimento cai. Você tá cansada por dormir mal, tá cansada de ficar estressada o dia todo, tá cansada da gritaria e da cobrança que ficam no seu ouvido o tempo todo, porque você sabe que a qualquer momento o telefone pode tocar e podem ser os bombeiros, podem ser os seus vizinhos, avisando que aconteceu alguma coisa com a sua - agora já frágil - casinha.

Então sua boca fica seca, abrindo e fechando o dia todo, ensaiando o que fazer e o que dizer se você precisar sair correndo. E o seu peito aperta, porque na sua mente você sabe que isso vai acontecer: você tem certeza que o telefone vai tocar dizendo que não sobrou nada. E de repente você não consegue respirar, porque a mera ideia disso tudo te destrói e te abala, e o medo do futuro parece prestes a te devorar com seus dentes imensos e sua boca de insegurança.

Você não consegue mais sair com os seus amigos, também. Como eles podem conversar sobre o novo filme do Escaravelho Pepinobate enquanto sua casa pegou fogo ONTEM?! Você sente raiva. Você sente raiva porque tem gente te machucando dentro da sua casa e eles não conseguem entender o motivo de você chorar e se isolar.

Porque você se sente julgada, já que suas roupas estão amassadas, sua expressão é de cansaço, seu corpo não aguenta mais as mesmas festas, e frequentemente você precisa chorar e desabafar e gritar, mas ninguém entende de verdade como é ter a casa invadida desse jeito. Só julgam as consequências e as suas reações.

Você não aguenta mais ir pro emprego. Você não sai mais. Você não vê mais os seus amigos, a sua família, ou a luz do sol, ocupada demais em tentar proteger a sua casa e se proteger dos julgamentos alheios.

Então as pessoas ficam preocupadas, e falam que é só você mudar de casa. Mas você não TEM outra casa! Tudo seu tá ali! Você não tem dinheiro, não tem tempo, não tem condição de se mudar assim!

Aí seus amigos pedem pra você dar uma volta pra relaxar. Mas CARALHO, tacaram o cachorro na piscina DE NOVO, e meu deus do céu, vocês nem viram o que eles fizeram com as fotos da minha adolescência, COMO DIABOS eu vou sair de casa e deixar esse pessoal todo aqui quebrando tudo?!?!?!

Dizem pra você se alimentar melhor, mas você não consegue sair de casa pra comprar salada, pra comprar carne, e depende só do que essas pessoas conseguem trazer. Do que essas pessoas lembram ou se importam em comprar, porque você tá tão exausta que não tem condições físicas ou mentais de fazer nada disso. Então seus amigos e sua família, essas pessoas maravilhosas, resolvem te visitar.

Mas essas pessoas, que agora moram na sua casa, tratam eles muito mal.

Ignoram a campainha, ignoram o telefone, gritam, xingam, jogam coisas, fazem escândalos, choram, tudo isso enquanto você tá subindo e descendo a escada porque o cachorro deu filhote e essas pessoas acharam legal deixar eles soltos pela casa e puta que pariu, alguém vai matar esses bebês!

Quando você vê, você tá sozinha. Ninguém aguentou as suas visitas indesejadas, e você no fundo se culpa, porque deixou chegar a esse ponto. No fundo você diz pra você mesma que sabia que aquilo ia acontecer, e que talvez você mereça mesmo ficar sozinha.

Sozinha com as visitas que gritam o quanto seus amigos te abandonaram porque você é um lixo.
Sozinha com as visitas que te pisoteiam durante a noite e fazem você acordar com o corpo todo dolorido.

Sozinha, sem aguentar se arrastar até a cozinha para comer, ou até o banheiro pra tomar banho, porque não sobrou mais nenhuma energia no meio desse turbilhão.

Sozinha numa casa que você não sabe mais como era antes, e que mesmo nas fotos você não consegue mais reconhecer.

Sozinha numa casa que um dia foi sua, que você não sabe como virou isso, que não tem mais espaço pra você, mas que é a única casa que você tem.

Sozinha numa festa que você é a única dona, mas uma dona que não quis que essa festa começasse.

Sozinha numa festa onde ninguém te conhece e você não conhece ninguém, mas de tanto apanhar e ser usada e sacaneada você reconhece cada um daqueles rostos e sente de longe quando essas pessoas estão se aproximando. Você escuta o seu coração acelerado como um sinal de que essas pessoas estão vindo para te pisotear, e já treme e se encolhe preparada para a dor.

Sozinha numa casa, presa numa casa, pro resto da sua vida, tendo que organizar bagunças que não são suas, pra poder - de vez em quando - sair e respirar, sair e rever os amigos, antes de voltar correndo pra tentar colocar tudo em ordem.

Sozinha com a sua ansiedade.

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