14.05.15

Eu nunca devia ter nascido. Eu fui um acidente, e as tentativas da minha mãe de me abortarem não foram bem sucedidas.

E eu cresci ouvindo isso dela e dos meus irmãos, nas surras que tomava.

Meu pai era um homem abusivo, que nos levava pra garagem pra nos surrar com mangueira, mesmo eu não tendo nem dez anos de idade. Minha mãe sempre foi ausente, e tentou compensar essa ausência com dinheiro.

Eu nunca soube o que é amor.

Aos meus oito anos minha avó materna morreu e meus pais se separaram. No mesmo ano, ganhei um padrasto - que é um anjo - e minha irmã foi embora de casa. A mesma irmã que dormia no mesmo quarto que eu, dividia cama, comida, escola, e as dores das surras que levávamos juntas. A mesma irmã que hoje não olha na minha cara, porque cinco anos separadas nos tirou a intimidade.

Aos nove anos de idade, meu pai me abandonou. Ele parou de me ligar, de me buscar, de me procurar. E eu achava que era porque eu era uma filha ruim e não merecia ter pai. Eu nunca entendi e nunca vou entender isso tudo.

No mesmo ano meu irmão foi embora pro Rio de Janeiro, fazer pré-vestibular, e de lá foi direto pra faculdade. Foram cinco anos sendo filha única, aguentando uma mãe alcóolatra que não sabia lidar com a perda de dois filhos em um período tão curto, e ainda batalhar na justiça contra a própria prole.

Eu não sei quantas vezes fui mancando pra escola, pelas surras infundadas. Não sei quantas vezes me cortei, me bati, me feri, achando que o problema era eu.

Nunca foi.

Aos doze anos eu sofri meu primeiro estupro, vindo de um dos meus melhores amigos. Esse mesmo melhor amigo que passou a me perseguir, me ameaçar, e a usar a minha história contra mim.

Na mesma época, me descobri bissexual e arrumei uma namorada. Uma namorada que um homem tirou de mim, entrando no nosso relacionamento com a """permissão""" dela, mesmo eu estando lutando violentamente - literalmente - contra a minha família pra continuar com ela.

A nossa amizade nunca mais foi a mesma.

Aos quatorze anos consegui um namorado que morava em outra cidade, e minha família não aceitava por ser oito anos mais velho. Perdi a conta de quantas surras e esporros levei por isso, e de quantas vezes ele foi expulso da minha casa por isso.

E eu ainda achava que gritar e machucar era amor, e fazia ele passar por isso por não saber amar de outra forma.

Aos dezesseis anos meu amigo foi assassinado no dia do meu aniversário. Eu fui morar na capital, sozinha, e acabei voltando pra casa de cabeça baixa no segundo semestre.

E no mesmo ano eu sofri outro estupro, por um cara que entrou na minha vida como uma salvação dos meus problemas.

Não existe salvação pros meus problemas.

Aos dezessete eu fui estuprada de novo, pelo mesmo cara dos meus doze anos, e dessa vez engravidei. Ninguém percebeu, ninguém acreditou. Meus amigos me abandonaram porque acharam que eu era louca. E eu fiz um aborto com uma amiga minha. Um aborto clandestino, insano, que deu certo por milagre.

Um aborto que eu nunca contei pra ninguém.

Aos dezoito anos fui diagnosticada com ansiedade, borderline, agorafobia e a chamada síndrome do pânico.

Apanhei da minha família, ouvi que era falta de dar a buceta, e que se era pra eu me matar, que me matasse ali, naquela hora, enquanto minha própria mãe me estendia uma faca. Larguei os tratamentos e encarei anos de vida trancada em casa, me cortando e me batendo, achando que era minha culpa.

Aos dezenove eu fui estuprada de novo, e engravidei de novo, pelo mesmo cara. Que no caso, é o mesmo ex-amigo que me perseguia desde os doze anos.

Ninguém que morava comigo percebeu. Ninguém que convivia comigo percebeu. Eu abortei em uma clínica de Botafogo, pelo "mero" valor de 2000 reais. Dinheiro que eu consegui trabalhando sozinha, enquanto fazia uma faculdade integral que eu odiava, contra a minha vontade.

Aos vinte eu conheci o feminismo e odiei.

Aos vinte e um eu percebi que eu precisava dele.

Então quando vocês me chamam de louca, de histérica, de instável, de anti-social, de misândrica, ou de qualquer outra coisa, lembrem-se disso aqui.

Lembrem de quantos homens passaram na minha vida e deixaram cicatrizes horrendas.

Lembrem de quanto, estatisticamente, eu não deveria estar viva. Do quanto eu sou o erro na porcentagem, o erro estatístico, e tenho sido a vida inteira.

E aí sim, se ainda quiserem, me chamem de louca.

Comentários